
É um ritual de gestos que se repetem diariamente e inequivocamente. Cada um dos intervenientes deste bailado silencioso de convenções sabe seu papel. Asdrúbal, alveneiro de profissão, chega a casa no final de um dia de trabalho na nova igreja que nasce em cidade próxima. Dotília, mulher de condição, põe-lhe jantar na mesa, já lhe lavou as roupas e aproveitou para ser se era preciso passajar alguma meia puída pelo uso. A um canto, Aldónio observa-os. É ainda bebé, seis meses passaram de seu nascimento, mas hoje seu futuro se define.
- Raios parta mulher. Que raio é isto que me pões na mesa?
- São vegetais Asdrúbal. São da nossa horta.
Pobre Dotília, engenhosa Dotília (mulher de condição, mais uma vez afirmo) dizer a Asdrúbal que come algo vindo de seu domínio, algo a quem deu o beneplácito da vida e agora o resgata. Resgatará?
-Eu não como disto. Quero carne. Quero sustança. Isto dá aos coelhos que gostam. Animal estúpido.
-Estúpido até pode ser, mas há coelhas com mais sorte que eu.
Murro sonoro na mesa ecoa. Asdrúbal ferido em seu orgulho e masculinidade levanta mão para Dotília. Aldónio chora. Dotília acode-lhe.
- Todos os dias me pões estes verdes na mesa. Eu quero carne. EU QUERO CARNE. E se carne eu quero, carne me darás.
-Também eu queria carne. Se eu não a tenho, também não a comes. (repare no tom brejeiro que excelso contador de histórias consegue introduzir graças ao artíficio do innuendo. Inteligente e que ao mesmo tempo estilhaça qualquer futura acusação de "intelectualidade")- suspira Dotília a meia voz.
Asdrúbal não ouve, ou faz por não ouvir. Deitam-se ambos os três: Dotília, Asdrúbal e suas congeminações.
Amanhece. Levanta-se Asdrúbal. Não irá continuar a contruir a casa do Senhor "Ele está em todo o lado e está, não sentirá falta de poiso por estes lados." Irá fugir até ao Porto e aí embarcará para o Brasil. Lá dará azo à sua obsessão por carne e criará o conceito
Rodízio de Carnes. Asdrúbal não voltará a costas lusitanas, virá sua ideia e solidamente se implantará por cá.
Voltemos a Dotília que aperta junto a si Aldónio. Está sentada na soleira da porta, seu marido não voltou ao final do dia, um dos aguadeiros da obra disse-lhe que hoje ele lá não esteve. Dotília adivinha o que é claro. Chora. "Que fazer? Sozinha e com um filho de colo...."
Aparece na vereda que a sua casa leva, Ti Chico Larilas. Vem falar com ela, dar-lhe apoio. Chico amou Dotília em juventude e sempre lhe invejou o aprumo de suas saias e toucados. Trocam-se e misturam-se palavras de raiva, de compreensão, de desepero e de incentivo. Apertam-se os corpos num abraço, reconhecem-se as almas metades de elas mesmas, inveja Chico o padrão do lenço que Dotília traz ao pescoço e que usa para ocultar seu peito quando Aldónio sofrego dela faz taça....